DF ignora lei federal e mantém um único psiquiatra para atender 28 mil presos no sistema carcerário
01/11/2025
(Foto: Reprodução) Entenda como funciona o exame criminológico que será obrigatório para progressão de regime
Há mais de um ano, o Distrito Federal vem descumprindo uma das principais mudanças introduzidas pela Lei das Saidinhas: a exigência de avaliação psiquiátrica para autorizar a progressão de regime dos mais de 28 mil detentos da capital.
A lei, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 11 de abril de 2024, diz que o exame criminológico é um pré-requisito para que os presos em todo o país possam progredir para os regimes semiaberto e aberto.
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A legislação também define que a comissão responsável pelo exame criminológico deve ser composta por, no mínimo:
1 psiquiatra;
1 psicólogo;
1 assistente social;
2 chefes de serviço (membros do próprio sistema penitenciário).
O Distrito Federal está longe de cumprir essa exigência.
Em 2024, segundo dados do governo federal obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), o sistema prisional do DF contava com:
3 psiquiatras para atender 28.552 presos — 1 profissional para cada 9.517 detentos.
17 psicólogos — 1 para cada 1.679 presos.
10 assistentes sociais — 1 para cada 2.855 detentos.
De lá para cá, as equipes – que já eram insuficientes para a demanda – ficaram ainda menores.
A Secretaria de Administração Penitenciária do DF reconheceu ao g1 que, atualmente, não há nenhum psiquiatra nas equipes que realizam os exames criminológicos e orientam decisões sobre a progressão de pena.
Segundo a pasta, o DF tem 12 policiais penais "capacitados" para assinar esses exames, incluindo seis psicólogos. Não há nenhum psiquiatra na lista.
Mesmo considerando esse número de "capacitados", a situação permanece crítica.
O sistema prisional do DF tem, atualmente, 28.618 pessoas privadas de liberdade. O número inclui 5.261 em regime semiaberto.
Com apenas 12 agentes capacitados para realizar exames criminológicos, cada profissional teria, em média, a responsabilidade de avaliar 438 presos.
Risco aos detentos e à sociedade
Mesmo antes da exigência do exame, a escassez de profissionais especializados já dificultava o atendimento clínico desses detentos – muitos, com histórico de uso de drogas, violência, transtornos mentais e traumas.
A exigência do exame criminológico adicionou novas atribuções às equipes de saúde mental. O volume de trabalho, cada vez maior, sobrecarrega a saúde mental dos próprios servidores que atuam no sistema penal.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) reconheceu em 2023 – antes da lei – a insuficiência das equipes técnicas e a sobrecarga de profissionais no sistema penitenciário.
A professora doutora Elisa Walleska Krüger afirma que não há equipe suficiente de psicólogos e assistentes sociais para atender à demanda.
“Em geral, o sistema prisional brasileiro não tem estrutura adequada para exames criminológicos de qualidade. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) relatam déficit de infraestrutura, sobrecarga carcerária e ausência de condições adequadas para avaliações padronizadas. Isso compromete a validade e fidedignidade dos exames”, destaca a doutora.
O que diz o governo?
O g1 entrou em contato com a Seape-DF para obter esclarecimentos sobre a ausência de psiquiatras na equipe responsável pelos exames criminológicos. Até o fechamento desta reportagem, não houve resposta.
A Secretaria de Saúde do DF afirma seguir a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade (PNAISP) para oferecer cuidados de saúde mental nas unidades prisionais.
Essa atuação é feita por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e integrada à Rede de Atenção Primária.
Atualmente, há 15 psicólogos e 1 psiquiatra atuando nas unidades prisionais do DF para prestar atendimentos de saúde.
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Segundo a pasta, a atuação da Psicologia no sistema prisional apresenta limitações ético-operacionais.
"Sobretudo pela ausência de sigilo nos atendimentos individuais devido à presença de escolta. Por isso, prioriza-se o enfoque psicoeducativo em grupos, com ações coletivas e interdisciplinares voltadas à promoção do bem-estar e prevenção de agravos", indica a pasta.
Principais Eixos de Atuação da Psicologia
Grupos Terapêuticos e Psicoeducativos: Manejo da ansiedade; prevenção da depressão; recaídas por uso de substâncias e adaptação à privação de liberdade
Acolhimento e Escuta Breve: Apoio a novos internos; intervenções em crises emocionais; estabilização do sofrimento psíquico agudo
Suporte ao Processo de Encarceramento: Enfrentamento do isolamento, ruptura de vínculos familiares, estresse da rotina prisional
Ações Interdisciplinares: Participação na elaboração do Projeto Terapêutico Singular, integração com equipe multiprofissional, promoção de cuidado integral e humanizado
Principais Eixos de Atuação da Psiquiatria
Consultas e Avaliação Psiquiátrica: Diagnóstico de transtornos mentais graves, acompanhamento clínico e subsídio ao plano terapêutico
Manejo Medicamentoso: Prescrição, monitoramento e ajuste de medicação
Interconsultas e Apoio Técnico: Suporte clínico a médicos e enfermeiros, condução de casos complexos e capacitação da equipe em saúde mental.
Exame criminológico e a Lei das Saidinhas
Complexo Penitenciário da Papuda, no DF
TV Globo/Reprodução
Desde abril de 2024, o exame criminológico voltou a ser obrigatório para que detentos possam progredir de regime, como do fechado para o semiaberto ou do semiaberto para o aberto.
🔎A progressão de pena — direito garantido pela legislação brasileira — permite que pessoas condenadas cumpram parte da pena em regimes mais brandos, como forma de reeducação e ressocialização.
Criado em 1984 e previsto na Lei de Execução Penal (LEP), o exame criminológico havia deixado de ser exigido em 2003.
Na época, uma decisão do Supremo Tribunal Federal considerou que o teste não era aplicado no país de maneira uniforme, o que gerava distorções.
Segundo a Seape, nesse intervalo entre 2003 e 2024, os exames criminológicos eram realizados no DF mediante solicitação da Vara de Execuções Penais e do Ministério Público.
Com a volta da obrigatoriedade do exame, a pasta afirmou que está implementando alternativas para ampliar a estrutura técnica e operacional para atender à exigência legal.
“Estão em estudo convênios, contratações complementares e projeto de concurso público para reforçar o quadro de profissionais especializados”, informou a secretaria ao g1.
A Secretaria Nacional de Políticas Penais afirma que a verificação do cumprimento das regras previstas na Lei de Execução Penal ocorre por meio de inspeções e visitas institucionais realizadas por ouvidorias, corregedorias, conselhos locais, pela própria secretaria, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e por outros órgãos de controle.
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Como funciona um exame criminológico?
💭 O exame é feito por uma equipe multidisciplinar que avalia o preso em aspectos psicológicos, familiares, sociais e comportamentais, traçando um perfil que indica o potencial de ressocialização ou risco de reincidência.
Embora possa contribuir para a ressocialização quando gera recomendações práticas — como inclusão em programas de educação, trabalho e saúde mental —, especialistas alertam que, na maioria dos casos, o exame é aplicado como instrumento de controle penal.
Em nota técnica de 2023, o Conselho Federal de Psicologia reforçou que o exame não deve ser confundido com uma ferramenta de punição, mas sim de apoio à reabilitação.
A proposta de extinção do exame também tem ganhado força entre estudiosos da área, que apontam a falta de padronização científica, o risco de violação de direitos humanos e o viés punitivo como principais problemas.
No entanto, o CFP defende uma reformulação do processo, e não necessariamente sua eliminação.
O conselho estabelece parâmetros nacionais para estrutura e prazos, indicando caminhos para melhorias urgentes, como capacitação de equipes, infraestrutura adequada e integração dos resultados a planos de intervenção contínuos.
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Dificuldades e possibilidades
Novas abordagens da psicologia criminal e da neurociência também têm potencial para aprimorar o exame.
Segundo Krüger, ferramentas como o HCR-20 -- instrumento canadense que avalia o risco de reincidência com base em fatores históricos, clínicos e de gestão –são reconhecidas internacionalmente e podem ser mais exploradas no Brasil.
Há, no entanto, alguns fatores que limitam a qualidade técnica e a segurança jurídica das avaliações dos exames criminológicos:
Sobrecarga de trabalho
ausência de padronização
pressão institucional
falta de treinamento específico
carência de instrumentos validados
dilemas éticos.
O governo do DF afirmou ao g1 que aguarda a aprovação de um projeto no Congresso para autorizar um concurso público e, com isso, ampliar o número de psicólogos no sistema penal.
Além disso, o governo prevê contratar clínicas especializadas para apoio às avaliações.
“O principal desafio é a quantidade de profissionais especializados nas áreas de Psicologia, Psiquiatria e Serviço Social. No entanto, a Seape mantém esforços contínuos para ampliar sua estrutura e garantir a realização dos exames criminológicos, que são essenciais para avaliar o perfil dos custodiados, orientar decisões judiciais e fortalecer a segurança da sociedade”, destacou a pasta.
Há um debate importante sobre os limites e as possibilidades das ferramentas utilizadas na avaliação de risco de reincidência criminal.
"Nenhuma avaliação prevê o risco de reincidência criminal. As ferramentas utilizadas podem fornecer estimativas probabilísticas, mas com limitações. Ainda assim, pesquisadores alertam que a neurociência não dispõe de marcadores individuais totalmente confiáveis para uso forense. Por isso, estudiosos defendem que o exame seja complementado por acompanhamento psicológico contínuo, mais eficaz na promoção da ressocialização do que avaliações pontuais", finaliza Krüger.
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